LENDO A BÍBLIA A PARTIR DA PERSPECTIVA DA
MULHER
“Escorraçada de um texto no
qual já não me reconhecia, eu me refugiava não nas linhas, mas as entrelinhas.
Ali eu deixaria uma muda e criptografada mensagem, uma mensagem que, como
garrafa lançada ao mar, talvez chegasse a alguém, num futuro próximo ou
distante.”
(sclair, 2007,
p.108)
Esta tem
sido a tarefa de muitos grupos de mulheres em torno da Bíblia. Ler a Bíblia a
partir de uma perspectiva feminista é aprender a ler nas entrelinhas. É buscar
encontrar em um texto marcado pela cultura patriarcal aquilo que ficou
encoberto ou não revelado. Ouvir as vozes silenciadas das mulheres na Bíblia
que deixaram suas mensagens criptografadas em seus corpos, em suas histórias.
Assim é que
se diz a leitura da Bíblia a partir das mulheres se assemelha a um diálogo corpo
a corpo. Essa leitura favorece a construção de significados e sentidos mediante
uma dinâmica de intertextualidade entre dois corpos. O nosso corpo, a nossa
vida e a experiência entra em diálogo com a vida, a história e os corpos das mulheres
da Bíblia.
A Bíblia
sempre foi apresentada para nós mulheres por meio de uma hermenêutica de
aceitação, obediência e submissão, sob a bandeira da defesa da autoridade
bíblica, sempre desempenhando papel-chave no tema contra a emancipação de
mulheres, por isso a necessidade de resgatar os textos bíblicos de sua
unilateral interpretação patriarcal e ocidental.
Na procura por novos caminhos
e espaços é que a hermenêutica feminista da Bíblia tem se apresentado, como o
jeito que muitas mulheres têm encontrado de ler e interpretar a Bíblia,
escapando daquela hermenêutica, onde o texto e as interpretações historicamente
construídas sobre os mesmos se tornam autoridades inquestionáveis. Para a
hermenêutica feminista, interpretar implica em sair das relações de dominação e
exclusão, e construir novos espaços democráticos, abertos a todos e todas,
independentemente de sua raça, etnia, sexo, classe social. (Fiorenza, 1992,
p.30)
A Bíblia é
uma das matrizes formadora da sociedade ocidental e cristã. Ana Tepedino em seu
livro “As Discípulas de Jesus” falam da importância de estudarmos a Bíblia e o
contexto que foi escrita, pelo fato de ser a Bíblia um livro não apenas
religioso, mas também um livro de dimensões cultural, social e política
(Tepedino, 1990, p.15). Por isso acreditamos que uma interpretação
crítico-feminista das Sagradas Escrituras pode contribuir para quebrar o
sistema patriarcal fechado, da igreja e da sociedade.
O Gênero como Instrumento Hermenêutico
“Não se nasce mulher, é preciso tornar-se mulher!”
É com esta
frase de Simone de Beauvoir que Ivone Gebara abre um dos capítulos de seu livro
Rompendo o Silêncio, onde ela resgata o significado histórico do conceito de
gênero. As análises de gênero aparecem no feminismo nos anos oitenta como meio de
avaliar a diferença entre sexos e denunciar o uso de certos poderes a partir da
diferença. A categoria de análise de gênero aplicada em diversos campos de pesquisa
ajudaram a alertar para dois grandes perigos:
o primeiro é considerar o
masculino normativo para a humanidade (androcentrismo) e o segundo é crer que a
diferença entre homens e mulheres está baseada apenas em fatores biológicos
(determinismo biológico).
Para Ivone
Gebara, a diferença de gênero é uma diferença entre a multiplicidade de
diferenças: diferença entre homens e mulheres, entre homens e homens e entre
mulheres e mulheres. E estas diferenças se cruzam com as diferenças de idade,
de cultura, religião e muitas outras. A leitura da Bíblia através da
intermediação da categoria de gênero tem nos ajudado a interpretar a Bíblia
re-significando conceitos, doutrinas e símbolos, indo além da moldura
patriarcal na qual fomos ensinadas.
Inquietas,
estamos sempre buscando os espaços de resistência e de liberdade. Alguns
caminhos e espaços estão sendo abertos para o exercício de uma interpretação bíblica
de libertação e de vida para as mulheres pobres, negras, indígenas e camponesas.
Mulheres que lutam por um outro mundo possível de equidade e justiça.
Estratégias para uma leitura bíblica a
partir da mulher
Mulher criando e recriando. Mulher buscando e tecendo novas maneiras e
jeitos de ser, de ler e de dizer. É assim que nascem novos paradigmas de interpretar
não só o texto, mas a própria vida.
Acreditar
que é possível recuperar e libertar o texto bíblico das suas tendências
patriarcais, não significa que ignoramos o fato de que a Bíblia é um livro
patriarcal na sua própria estrutura e não somente um problema de interpretação dos
textos. Contudo, entendemos que o caminho para contornar este problema está na
liberdade das mulheres, enquanto leitoras, para que construam e reconstruam seu
próprio significado. Pensando nisso, Elizabeth Fiorenza propôs uma metodologia
para a leitura feminista da Bíblia que ela denomina de: Dança Hermenêutica Feminista (Ottermann,2003): O primeiro passo, o da “suspeita” ou “desconstrução” visa
identificar as distorções patriarcais com atenção para os seguintes problemas:
1.
Linguagem androcêntrica, ou seja, reconhecer que a Bíblia é escrita numa linguagem
excludente torna invisível a presença, a opressão, a luta e a libertação das
mulheres;
2. Seleção
androcêntrica de tradições históricas, percebendo que muitas informações sobre
a atuação de mulheres não foram registradas porque foram julgadas sem
importância por ser uma ameaça ao patriarcado;
3. Função
patriarcal da canonização: o Cânon do Primeiro Testamento bem como do Segundo
exclui textos escritos que mostram protagonismo e experiências de mulheres;
4.
Traduções e interpretações androcêntricas que reforçam o seu androcentrismo;
5. Textos
silenciados: textos bíblicos que falam de mulheres são frequentemente
silenciados na interpretação oficial, tendo pouca ou nenhuma influência na formação
bíblica de nossas comunidades.
O segundo passo, o da “Memória” é o início
da reconstrução que se faz a partir de comparação de informações bíblicas com
outros textos além da Bíblia. Este segundo passo precisa de assistência de pessoas
capazes de assessorar não só em analises feminista e de gênero, como também em
pesquisas literárias e sócio históricas da Bíblia.
O terceiro e último passo seria o da
“Atualização” e “Anúncio”. Trata-se de traduzir toda essa reconstrução para
o nosso tempo, na linguagem do nosso povo, para as suas necessidades e anseios.
Isto requer
criatividade para que essas descobertas cheguem a nossa comunidade e cause
transformação, que não fique restrito a círculos fechados de estudiosos da
Bíblia, mas alcance todas e todos, construindo novas relações de parceria e respeito
e de interdependência entre homens e mulheres.
Aprender
essa dança hermenêutica é um desafio para nós mulheres e homens que acreditamos
na igualdade e justiça das relações e para nós que apesar de reconhecermos o
problema patriarcal da Bíblia, continuamos vendo nela também a Revelação de
Deus para mulheres e homens.
Ler a
Bíblia na perspectiva da mulher é como aprender os passos de uma nova dança.
Requer muitos ensaios até acertar o passo. Entre erros e acertos descubro um novo
ritmo pra minha dança. Nesta dança me encontro com outras mulheres. É dança que
se dança na roda, de mãos dadas, dança sensual que provoca os modelos
hermenêuticos tradicionais, patriarcais, racionais, fechados e unilaterais.
Sigo
dançando, embalada em uma canção que bem poderia ser o canto de vitória de
Isaías 42.14:
Há muito me calei, guardei silêncio e me
contive.
Como uma mulher que está de parto
Eu gemia,
Suspirava,
Respirando ofegante...
Pra. Odja Barros
Referências bibliográficas:
1-FIORENZA, Elizabeth S. As
origens cristãs a partir da mulher: uma nova hermenêutica. São Paulo: Paulinas,
1992.
2- GEBARA, Ivone. Rompendo o
Silêncio: Uma fenomenologia feminista do mal. Petrópolis,RJ: Vozes,2000.
2-TEPEDINO, Ana M. As
Discípulas de Jesus. Petrópolis: Vozes, 1990.
3-OTTERMANN, Mônica. Gênero e
Bíblia: Uma ciranda sem fim. Por Trás da Palavra, São Leopoldo, ano 23, n. 138,
2003.
4- Sclair. Moacir; A mulher
que escreveu
HAGAR
A MATRIARCA DO
DESERTO
Gênesis 16; 21.8-21
A narrativa gira em torno de 3
personagens: Abraão, o pai na fé, Sara, a bela que é estéril e Hagar a serva
egípcia, nesse triângulo que não é amoroso, Sara a patroa se sobressai como a
vitoriosa que é estéril e avançada em idade, mas mesmo assim é contemplada com
uma gravidez que suscitará o cumprimento da promessa.
Acontece,
porém, que ao tirarmos o foco de Sara e colocarmos em Hagar, encontraremos uma mulher
que, ao contrário da patroa, é desprovida de proteção, e que a partir do seu
universo solitário tira forças e dá a volta por cima mudando a sua história.
Gênesis 16; 21.8-21.
A história
de Hagar registrada em Gn 16; 21.8-21 mostra uma mulher escrava e estrangeira
que de acordo com os costumes da época “empresta” o útero para a patroa Sara
que é estéril. Segundo o texto bíblico após o nascimento desse filho Sara acusa
sua serva de estar sendo humilhada por não ter gerado filho a Abraão. Hagar é
expulsa da casa dos patrões, sem nenhum direito diante de sua própria situação,
humilhada e sozinha, carrega nas costas o peso das estruturas de poder em um
mundo patriarcal onde nada pode fazer a não ser submeter-se a uma situação de
injustiça. Sua história é muito parecida com as histórias de outras mulheres
que também são abandonadas e com filhos para criar e que precisam sobreviver no
deserto de sua própria vida. Na postura de Abraão, podemos identificar os milhares
de homens que “sumiram” deixando seus filhos abandonados e em condições
difíceis de sobreviver. Porém, Hagar entra na contramão da história mostrando
ser capaz de lutar por seus direitos e de seu filho Ismael. Já que se encontra
sozinha, pois Abraão, o pai na fé, se apresenta omisso, deixando com que Sara determine
o destino da escrava e seu filho. Entretanto, Hagar é privilegiada com uma experiência
de encontro com Deus, semelhante à dos grandes profetas do Antigo Testamento.
Essa mulher atravessa a história e recebe de Deus a promessa de ser mãe de uma
grande descendência, provando que sua resistência contra o sistema opressor fez
dela uma mulher vitoriosa e salva pelo Deus da vida. Hagar, em seu ambiente
deserto e solitário, reverte a situação e emplaca na história se impondo em
defesa de seu filho Ismael.
A história
de Hagar, como de tantas outras desafia-nos a fazermos do nosso universo,
muitas vezes dominado e sem alternativas dentro de estruturas de poder e dominação,
um espaço de resistência contra a exclusão e de tantas outras mazelas
provenientes de estruturas dominadoras, descobrindo um Deus que cuida dos
pobres e oprimidos. Nesse contexto, aprendemos com Hagar que é possível
reverter a situação lutando e buscando o nosso espaço e a nossa identidade.
Texto: Vilma Lins
REBECA
A SEGUNDA MATRIARCA DO POVO JUDEU
Gênesis 24-28
Rebeca era uma
mulher de personalidade forte decidida e corajosa. Casou-se com Isaque o
herdeiro das promessas de Deus a Abraão veio de Aram, terra natal de Abraão
aceitou sair da casa de sua família para ir ao encontro de Isaque e para um
lugar desconhecido.
O texto
mencionado refere-se à história do casamento de Isaque, o filho do grande
patriarca Abraão. A história de Isaque é marcada por acontecimentos que o
deixam como que alheio aos acontecimentos de sua própria vida. Quando criança
não pôde decidir se queria ser sacrificado, quando adulto precisou que alguém
fosse atrás de sua noiva; na velhice não se impôs frente a atitude de sua
mulher ao enganá-lo sobre a questão dos filhos. Com esse histórico, meio sem
graça, podemos constatar que sua vida foi marcada pela presença da bela
menina-mulher Rebeca, (aquela que une).
Tudo
começou quando Abraão pediu ao seu servo Eliezer que fosse à terra onde nasceu
a fim de arrumar uma noiva para Isaque e assim dar continuidade ao que Deus
tivera prometido. É nesse contexto que os destinos de Rebeca e Isaque se
cruzam.
Vamos
conhecer um pouco da história dessa mulher Rebeca é a grande protagonista, não
só de sua própria vida, mas também de toda sua família. Ao contrário de Isaque,
ela é quem decide o seu próprio destino ao ser escolhida por Deus para ser
levada até Isaque, e tem o poder de decidir se fica com seus familiares ou
segue com o homem desconhecido para um lugar que não conhece (24.5-8, 39-41).
Mesmo antes de saber qual o motivo da presença daquele estranho, ela o acolhe
em sua casa e o mesmo demonstra que tem pressa de retornar ao seu senhor,
também nesse momento a decisão fica por sua conta. Nem mesmo seu irmão Labão
interfere em sua decisão de retornar o mais breve possível. Podemos também
destacar a grande semelhança entre Rebeca e Sara, pois ambas eram bonitas e
estéreis. Rebeca, tanto quanto Sara, precisou fingir ser irmã de Isaque, porém
na sua esterilidade teve um destino diferente de Sara, ao invés de “arrumar”
alguma escrava para o marido, recorreu a YHWH (Gn 25.21). O seu pedido foi
ouvido e Rebeca engravidou. Sua gravidez foi muito difícil, para sua surpresa
descobriu que iria dar a luz a dois meninos, e que ambos seriam rivais; ficou
tão triste que pediu a Deus pela sua própria morte (Gn 25.22a), mas ao ter o
seu coração consolado seguiu em frente entendendo que o que Deus tinha
reservado para sua vida era maior do que se podia imaginar.
Os meninos
nasceram e desde o ventre já se mostravam “competindo” entre si (Gn 25.26). O
primeiro a nascer foi Esaú, esse era o preferido do pai e o segundo se chamava
Jacó esse era preferido da mãe anos se passaram e Isaque bastante velho e
doente, chamou seu filho mais velho para “passar a bênção” Rebeca que estava no
lugar certo na hora certa escutou a conversa de Isaque com o filho primogênito
e cuidou de dar um “jeitinho”, contou tudo ao filho Jacó e ambos armaram um
plano, dessa forma Jacó obteve a bênção que lhe era cabível. Jacó se mostrou
receoso e Rebeca assume a responsabilidade pelo plano (Gn 27.11-13). Mais uma
vez Rebeca protagoniza um acontecimento que repercute sobre todos da família,
ao ter descoberto o plano de que foi vítima Isaque mais uma vez se omite e se
conforma com o transcorrer dos fatos. Esaú porém teve atitude inversa ao pai,
ao saber do que ocorreu, o mesmo decidiu vingar-se do irmão, Rebeca novamente
interfere e protege Jacó mandando-o embora com o argumento do casamento e assim
Jacó sai da casa de seus pais tendo o consentimento de Isaque (Gn 27-30-40).
Provavelmente Rebeca nunca mais viu Jacó, mas em seu coração ficou a certeza de
ter salvo a vida de seu filho e assim garantiu que a promessa feita a Abraão
fosse cumprida e Jacó se tornou pai de doze tribos.
Aqui
termino a história de Rebeca, essa matriarca que soube se impor desde o início
de sua vida, não permitindo que os outros decidissem por ela. Com esta mulher,
fica a lição de que muitas vezes precisamos tomar decisões que possam parecer
desonestas e desumanas, para seguir a nossa intuição que nos levará a
beneficiar toda uma família, pois seu caráter decidido e sua intuição aguçada a
levaram a agir na hora certa.
Texto: Vilma Lins
RAQUEL E LIA
PARCERIA OU
RIVALIDADE?
Gênesis 29-35
CONVIDO-LHE A
PENSAR A RESPEITO DOS SENTIMENTOS QUE ENVOLVEM AS PROTAGONISTAS DESTA HISTÓRIA.
Raquel e
Lia, são conhecidas como as irmãs rivais, que viviam disputando o amor de um
homem. Apresentadas dessa forma: a bela X a feia, a fértil X a estéril, a amada
X a mal amada e por aí vai.... Essa mensagem é fruto de uma teologia que não
avança; pregada por homens e reproduzida até hoje, inclusive por mulheres, que
não percebem que este é um mecanismo utilizado pelo sistema patriarcal que
reproduz o antagonismo entre mulheres. O estímulo à disputa entre nós é algo
impressionante e os meios de comunicação contribuem de forma poderosa com o
incentivo à violência no sentido mais profundo e variado. O problema, é que,
cedo ou tarde temos a oportunidade real de nos posicionarmos sobre situações de
parceria ou rivalidade em nossas relações. E como reagiremos? Como agiremos de
forma diferente se fomos educadas numa cultura de rivalidade?
Mas relendo
essa história, descobrimos que não era bem assim. No tempo de Raquel e Lia era
cultural, totalmente legitimado e comum o matrimônio com mais de uma mulher.
Elas foram educadas para esse modelo familiar; era assim com todas as mulheres daquela
época. O sentimento que as envolvia era de partilhar tudo: bens, homem, filhos,
terras etc. Mulheres parceiras, que juntas davam conta de todo o andamento da comunidade,
educação dos filhos, afazeres domésticos, dores e vitórias de um futuro familiar.
O que nos mostram como rivalidade, são apenas sentimentos legítimos de mulheres.
Entendendo a realidade cultural da época, e não julgando o texto a partir da
nossa cultura e realidade ocidental, podemos libertar Raquel e Lia de serem
tachadas de rivais.
O
sentimento de parceria é o que devemos estimular entre nós mulheres e homens.
Sei que não é fácil desconstruir toda uma cultura de antagonismo. Temos todo um
contexto, que envolve nossa educação, mas temos também a responsabilidade de
refletirmos, repensarmos, desenvolver novos olhares, novas direções e dimensões
de sentimentos. Esse movimento precisa começar dentro de nós, produzindo reflexão
sobre o universo que nos rodeia e gerar, a partir daí, vida, igualdade,
comunhão e respeito.
Texto: Genilva Barbosa
TAMAR
CORPO E
RESISTÊNCIA
Gênesis 38.1-38
Fiquei
impressionada ao ver a reportagem sobre Dom Cáppio, no manifesto contra a
transposição do rio São Francisco, me saltou aos olhos a forma usada pra
protestar. Depois de tantas reuniões com autoridades, apresentações de
projetos, sua voz simplesmente não foi ouvida, restando-lhe recorrer ao seu
corpo como símbolo de sua luta, que ele esperava soar mais forte que palavras.
Aquele homem ganhou meu respeito e admiração, pois num mundo tão
individualista, ver alguém sacrificar seu corpo em nome da coletividade, é
admirável.
Lembrei
então, de outras pessoas na história que colocaram seu corpo à disposição de
uma luta, como: Gahndi, Joana Darc, mais recente, o caso da irmã Dorothy Stang
e o próprio Jesus Cristo que entregou seu corpo como sacrifício.
Se existe algo que deve ser de
domínio só nosso é o nosso corpo, mas essa não é a realidade. Talvez, por isso,
os corpos, não só das mulheres, mas também de homens e crianças, sejam tão
agredidos, invadidos, aliciados, vulgarizados e desprezados. A violência contra
as mulheres é um fato alarmante, vergonhoso e inadmissível. Infelizmente, mesmo
depois, de tanto trabalho de combate a agressão e a tão falada lei Maria da
Penha, não percebemos uma mudança significativa. São tantos casos, todos os
dias, que a nossa luta parece tão pequena diante de tanta impunidade.
Mas, o que
isso tudo tem a ver com o texto bíblico? Vou lhe dizer: talvez você não tenha
percebido, mas Tamar é uma mulher que está sofrendo violência. Depois de ficar
viúva, sem filhos que lhe garantisse a proteção familiar e social, ela tinha
apenas a segurança garantida pela lei do “Levirato”, que obrigava o irmão do
marido assumir a viúva. Porém, essa mesma lei, garantia que os filhos nascidos
da viúva, eram descendência do irmão morto e não do que gerou.
Onã, então, sabendo disso,
encontra uma solução para negar este direito a Tamar, e toda vez, que tem relações
com ela, deixa seu sêmen cair na terra para não dar descendência ao irmão (Gên.
38:9). Para uma mulher que precisava de um filho pra sobreviver e tem seu corpo
desmoralizado dessa forma por Onã, não é violência? Eu vejo como violência. É
claro que você pode discordar. Quero ressaltar que Tamar, muito mais que todas
nós, não tinha direito algum sobre seu corpo no tempo em que vivia, mas mesmo
assim, conseguimos encontrar nela uma lição para guardarmos por toda vida.
Ela depois
de muito tempo de dor e desprezo, correndo risco de ficar desamparada, encontra
solução de luta e resistência a partir do próprio corpo. Quando seu sogro fica
viúvo, ela elabora um plano ousado pra finalmente conseguir um “goel”, um
“redentor” (como era conhecido o parente da família que resgata a mulher em tal
situação), que pudesse dar-lhe um filho, pois era a única saída diante daquela
realidade. Ela parte pra luta! Eu consigo imaginar: a roupa preta do luto caída
no chão, seus pés passando por cima delas como se andasse do passado para o
futuro. O colocar minucioso de cada peça, depois a maquiagem, o perfume e
finalmente o véu, que apesar de delicado lhe parecia um escudo. Seus dentes mordendo
os lábios, seu coração acelerado, cólica na barriga, mas seus passos firmes e
determinados em fazer justiça. Seu sogro, que voltava de uma viagem, tomou
aquela mulher desconhecida, que estava na entrada da cidade, à sua espera, mas
antes, ela exige que lhe entregue a prova de que esteve com ela. E assim
conclui seu plano. Volta para casa grávida e de posse do selo, do cordão e
cajado que identificam o pai da criança. Seu sogro, agora, é obrigado a lhe
fazer justiça (vs. 16 -18).
Com
certeza, há milhares como Tamar por todo mundo, mulheres que fazem do seu
corpo, arma de luta e resistência, contra o sistema opressor, de desigualdade,
de exclusão social, de abuso de todos os poderes. Sistemas incoerentes e
desumanos. Muitas de nós precisamos tomar consciência do nosso próprio corpo.
Foi o próprio Deus que nos criou à sua imagem e semelhança. Acredite! Só com
essa consciência será possível resistir e desmontar as engrenagens desses
sistemas. Juntas, podemos encontrar outros caminhos de resistência!
Texto: Genilva
Barbosa